terça-feira, junho 20, 2006

Caça às borboletas

foto: "Para onde olham os sonhos",
Raimundo Gomes, 2003.




"Caça às borboletas

Antes de eu entrar na escola e sem prejuízo de algumas viagens de verão, íamos todos os anos para casas de veraneio nos arredores. Durante muito tempo, essas estadas foram-me recordadas pela espaçosa caixa na parede do meu quarto de rapaz, onde se viam os começos de uma colecção de borboleta cujos exemplares mais antigos foram caçados no jardim do Brauhausberg. As borboletas-da-couve com os bordos cortados, as borboleta-limão de asas muitos lustrosas, traziam-me à memoria caçadas ardentes que tantas vezes me tinham levado para longe dos caminhos bem arranjados do jardim, para brenhas onde, impotente, enfrentava as conjurações do vento e dos cheios, da folhagem e do sol, que provavelmente orientavam o voo das borboletas. Voam para uma flor, ficavam a pairar por cima dela. Com a rede no ar, eu só esperava que o poder de atracão que a flor parecia exercer sobre o par de asas completasse o seu trabalho; então o frágil corpo deslizava com leves impulsos laterais, para, igualmente imóvel, ir sombrear outra flor e mais uma vez a deixar com a mesma rapidez, sem lhe tocar. Quando uma vanessa ou uma esfinge, que eu facilmente poderia apanhar, me comia as papas na cabeça hesitando, desviando-se, esperando, eu bem gostaria de me dissolver em luz e ar para me poder aproximar e dominar a presa. E o desejo realizava-se na medida em que cada batimento ou oscilação das asas, que me fascinava, me tocava com o seu sopro ou me fazia estremecer. Começava a impor-se entre nós a velha lei dos caçadores: quanto mais eu me confundia com o animal em todas as minhas fibras, quanto mais eu me tornava borboleta no meu íntimo, tanto mais aquela borboleta se tornava humana em tudo que fazia, até que finalmente, era como se a sua captura fosse o único preço que me permitia recuperar a minha condição humana. Mas quando tudo acabava era penoso fazer o caminho desde o lugar da caçada feliz até ao acampamento, onde o éter, o algodão, os alfinetes de cabeças coloridas e as pinças apareciam na caixa de herborista. E em que estado ficava o terreno atrás de mim! Ervas partidas, flores pisadas; o próprio caçador empenhara o próprio corpo, deixando-se arrastar pela rede. E no meio de tanta destruição, insensibilidade e violência, a borboleta assustada lá continuava, a tremer e apesar disso graciosa, numa dobra da rede. Enquanto fazia este caminho penoso, o caçador era assaltado pelo espírito daquele que está destinado a morrer: Quanto à língua Estranha em que aquela borboleta e as flores se tinham entendido diante dos seus olhos, agora também ele tinha aprendido das suas leis: A sua ânsia de matar diminuíra na mesma proporção em que a sua confiança aumentara. O ar em que aquela borboleta voltejava está totalmente impregnado de uma palavra que desde decénios não passa pelos ouvidos nem pelos lábios. Conservou aquele lado insondável com que os nomes com que os nomes da infância se apresentam aos adultos. O longo Tempo de silenciamento transfigurou-as: É assim que vibra, no ar cheio de borboletas, a palavra “Brauhausberg”.1 A nossa casa de verão ficava no Bauhausberg, perto de Postdam. Mas o nome perdeu toda a pesadez, já nada contem que se relacione com uma fábrica de cerveja, é quando muito um monte envolvido no azul, e que no verão se erguia para nos receber, a mim e aos meus pais. Por isso Postdam da minha infância se destaca de um ar tão azul que parece que as bruxas e almirantes, olhos-de-pavão e auroras que aí esvoaçavam se espalham sobre um daqueles brilhantes esmaltes de Limoges em que se recortam, sobre fundo azul escuro, as ameias e as muralhas de Jerusalém.

1 – À Letra “Monte da fábrica de cerveja”."


BENJAMIN, Walter, Imagens de Pensamento, Edição Assírio & Alvim, Edição e Tradução de João Barrento, Lisboa, 2004, pp. 80-82.



7 comentários:

Anónimo disse...
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Anónimo disse...
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Anónimo disse...

Passa uma borboleta por diante de mim
E pela primeira vez no Universo eu reparo
Que as borboletas não têm cor nem movimento,
Assim como as flores não têm perfume nem cor.
A cor é que tem cor nas asas da borboleta,
No movimento da borboleta o movimento é que se move,
O perfume é que tem perfume no perfume da flor.
A borboleta é apenas borboleta
E a flor é apenas flor.
"eu"

Anónimo disse...
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Anónimo disse...
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Anónimo disse...

Alberto Caeiro
In Jornal de Poesia

XL - Passa uma Borboleta

Passa uma borboleta por diante de mim
E pela primeira vez no Universo eu reparo
Que as borboletas não têm cor nem movimento,
Assim como as flores não têm perfume nem cor.
A cor é que tem cor nas asas da borboleta,
No movimento da borboleta o movimento é que se move,
O perfume é que tem perfume no perfume da flor.
A borboleta é apenas borboleta
E a flor é apenas flor.

Anónimo disse...

ler todo o blog, muito bom