sábado, setembro 04, 2010

Às voltas no mundo de Sofia


"É um filme sobre o vazio. Sobre gente no limbo à procura do seu lugar na vida.Somewhere anda às voltas sem sair do mesmo sítio - tal como Sofia Coppola. E isso, neste caso, é bom



Sofia Coppola está habituada ao escrutínio dos holofotes - como se não bastasse ser filha de quem é, quem assina Lost in Translation - o Amor é um Lugar Estranho, um dos primeiros filmes seminais do século XXI, ergue inescapavelmente as expectativas a uma fasquia difícil de manter.

Daí que, quatro anos depois de uma
Marie Antoinette que dividiu as águas e levou alguns a chamarem-lhe mulher de um só filme, o primeiro frisson inevitável da competição do Festival de Cinema de Veneza seja Somewhere.

O filme foi acolhido calorosamente - a idiossincrasia de
Marie Antoinette foi perdoada, mesmo que não reencontremos aqui a inspiração do sublime Lost in Translation, mesmo que este filme que se diz ser o "mais pessoal" da filha Coppola seja no fundo mais uma variação sobre o seu tema habitual: gente no limbo à procura do seu lugar na vida.

Mas chegará isso para recuperar o estatuto?

Não sabemos. Apesar dos aplausos que receberam o filme na projecção de imprensa, estamos mesmo a ver muita gente a resmungar que
Somewhere é mais um filme de menina rica sobre meninos ricos que não sabem o que fazer na vida.

É verdade. Lembrámo-nos, a certa altura, do episódio que Sofia escreveu para a
História de Nova Iorque do pai Francis, há vinte anos, sobre uma menina rica que vive num hotel - e Johnny Marco, o actor desenraizado interpretado por Stephen Dorff que é o centro de Somewhere, vive no lendário Chateau Marmont de Los Angeles.

Lembrámo-nos, também, de Marie Antoinette, menina rica perdida num mundo que não dominava - e Johnny também está perdido, na cerveja, nas noitadas, no tabaco, no sexo fácil a toda a hora, nas
lap dances ao domicílio, no superluxo dos hotéis e do tratamento VIP. Que não são "substitutos" de nada mas apenas maneiras de preencher o vazio.

Mas o que Sofia faz tão bem é precisamente fazer-nos sentir o vazio - viver o vazio. Dentro desta fachada de luxo não há nada e é preciso que haja alguma coisa, quanto mais não seja por Cleo, a filha adolescente que visita Johnny de vez em quando e acaba por lhe mostrar, imperceptivelmente, o que lhe falta.

E é preciso estar com atenção para ver o que falta.
Somewhere é um filme de pormenores subterrâneos, planos longos e cores queimadas (rodadas e projectadas em película - o director de fotografia é Harris Savides, que assina aqui um segundo belo trabalho de Los Angeles em filme depois do Greenberg de Noah Baumbach). É o filme mais despojado, mais austero, mais "vazio" de Sofia - e esse despojamento é o exacto oposto da máquina da fama que Somewhere retrata com um misto impiedoso de melancolia e humor que fere onde dói mas que não julga. Contudo, o próprio filme presta-se a essa máquina, ao estar a concurso num festival tão mediaticamente VIP como Veneza.

A ironia não se perde: ao nosso lado na projecção está uma jornalista italiana louríssima, impecavelmente produzida, que logo antes do filme começar pega no espelho para ver como está o cabelo, bufa aborrecida um par de vezes ao longo do filme e, assim que as luzes sobem, saca da bolsa para retocar a maquilhagem.

Há, evidentemente, algo de rebelde num filme que morde (mesmo que gentilmente) a mão que lhe dá de comer, de menina rica que se queixa sobre como é chato ser uma menina rica. Mas são essas contradições que alimentam a tensão do cinema de Sofia e, sobretudo, de
Somewhere.

E, como em todos os filmes de Sofia, é nesse vazio onde nada parece acontecer que tudo acontece - por camadas, por acumulação de pequenos nadas que constroem uma história pontilhista.

É legítimo perguntar: estaríamos a prestar tanta atenção a
Somewhere se fosse outra pessoa (digamos, Vincent Gallo) a realizá-lo? Gostaríamos tanto? É uma pergunta sem resposta. Mas pensá-lo implica que Sofia é uma menina rica que só filma por ser filha de quem é. E o que faz de Somewhere um bom filme é precisamente isso: ninguém filma o vazio do sucesso como alguém que o conhece de dentro para fora. Alguém como Sofia Coppola. Ninguém filma o vazio do sucesso como alguém que o conhece de dentro para fora. Alguém como Sofia Coppola (à esquerda, imagem de uma das cenas de Somewhere)"


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