quinta-feira, setembro 16, 2010

"Carne e píxeis sobre tela" Crítica Ípsilon por: Luísa Roubaud

  • ípslon

  • Is You Me (Torres Novas)
  • Coreógrafo: Benoît Lachambre (criação conjunta), Louise Lecavalier (criação conjunta), Laurent Goldring (criação conjunta), Hahn Rowe (criação conjunta)
  • M/12. Festival Materiais Diversos.

Criação conjunta de Benoît Lachambre, Louise Lecavalier, Laurent Goldring e Hahn Rowe.

Alguma expectativa envolvia o reencontro (depois do solo "I" Is
Memory, 2006) destes dois criadores-intérpretes canadianos de nomeada, com percursos na dança muito distintos. A indómita e carismática Louise Lecavalier (n. 1958), ícone da dança dos anos 80/90, é considerada uma das mais fulgurantes e trágicas bailarinas da nossa época. A sua energia acrobática deixaria famosos os barrel jumps (aparatosos tour en l"air na horizontal), imagem de marca da companhia La La La Human Steps, e combinava na perfeição com a atmosfera urbana do repertório daqueles anos; Benoît Lachambre (n. 1960; Forgeries, Love and Other Matters, de e com Meg Stuart, Culturgest, 2005), orientou-se para as release e somatic techniques, e a pesquisa interdisciplinar; a improvisação norteia o trabalho que desenvolve na estrutura Par B.L.eux, desde 1996. À dupla juntou-se o artista visual L. Goldring (n. 1957) e o compositor H. Rowe (n. 1961); Is You... resulta numa espécie de jam de improvisação-contacto multimédia. Um ciclorama branco ao fundo da cena era a tela vazia onde, a partir de um software de desenho, um projector construía o espaço cénico com linhas e formas geométricas animadas, e um registo monocromático cedia lugar a cores plenas. Música electrónica, sons do trânsito, vozes, canto de cigarras samplados compunham a paisagem sonora. Louise e Benoît, corpos sobre a tela digitalmente maquilhados, num dueto sem identidade nem género, encapuzadas sob indumentária casual, ora negra, ora colorida, eram personagens gráficas, dissolvidas numa geometria em movimento; irrompiam, ocasionalmente, como organismos vivos (por vezes répteis ou aves; outras quase humanos). Nos momentos mais curiosos, dançavam com as linhas de desenho, pareciam seguir ou produzir a sua dinâmica, subvertendo o pressuposto de que o corpo em dança reage sobretudo à música ou som. O exercício proposto não é, porém, sempre resolvido com clareza: entre a matéria orgânica dos corpos e a projecção gráfica quasi-animista, permanece uma zona de conflito. Uma tensão entre a abstracção e representação - interessante, mas nem sempre produtiva - interfere com a pura fruição perceptiva mas também com o chamamento de outras associações mentais; e suscita, amiúde, a tomada de consciência acerca dos momentos de confluência - e de deriva - decorrentes de uma improvisação multimédia a quatro mãos. A exploração da dimensão "não-utilitária" da tecnologia digital na performance tem, nas últimas décadas, criado novos universos plásticos, poéticos e temáticos que, reflectindo a mudança estatuto do corpo no mundo actual, exploram a conectividade da arte aos tempos que correm. Este corpo "pós-humano" conhece, contudo, uma genealogia antiga, com a pré-história em Loie Fuller (1862-1928), num arco que atravessa o século XX e desemboca nas experimentações de Cunnigham, Y. Rainer, nos sixties judsonianos, na body art, nos corpos cyborg, etc. Is you me... actualiza aspectos debatidos desde os anos 50-70, baseando-os, agora, na interactividade digital: a acessibilidade do gesto, a efemeridade da performance, o acaso, o valor do processo face ao produto, são aproximações metafóricas da própria vida. Um controlo técnico irrepreensível não impede, todavia, a peça de resultar mais visual que conceptual; outros questionamentos dissipam-se num jogo das interacções digitais, ficando a ideia de que tanto haveria por onde subtrair como por onde adicionar.


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