sábado, outubro 02, 2010

"Partida, largada, rebutoh" escrito por Tiago Bartolomeu Costa

"Xavier Le Roy abre Mugatxoan, em Serralves. Product of Other Circumstances expõe-no em pleno processo de aprendizagem

Quantas vezes pode um coreógrafo começar uma carreira? Tantas quantas as ideias que tiver para fazer um espectáculo, dir-se-á. Mas, por vezes, as ideias que os artistas têm em conversas ocasionais podem virar-se contra eles. Foi mais ou menos isso que aconteceu quando o coreógrafo Xavier Le Roy, de 47 anos, leu o e-mail de Boris Charmatz, também coreógrafo, lembrando-o de uma conversa que tinham tido anos antes. Nela, Charmatz falava de uma tirada dita por Le Roy sobre o butô, o género de dança contemporânea oriental mais conhecido: "Para nos tornamos num intérprete de butô, bastam duas horas", tinha-lhe dito Le Roy. E este só conseguiu responder: "Não me lembro de o ter dito, mas assumo a responsabilidade. Se não o tiver dito, tiveste uma excelente ideia".

Estava lançado o mote para uma peça que deveria levar o coreógrafo a prolongar o seu modo de pensar a própria dança, onde há uma vontade de identificar o movimento sugerindo interpretações diversas que o ampliem e explorem esse potencial de abstracção. Chamou-lhe Xavier Makes Some Rebutoh, trabalhou-a nos tempos livres e mostrou-a a 24 de Novembro de 2009 no Museu da Dança, que Charmatz dirige em Rennes, no Noroeste de França.

O que é a dança?

Product of Other Circumstances, que abre hoje a programação do Mugatxoan (22h, Auditório de Serralves), um laboratório de pesquisa e reflexão coordenado por Serralves em colaboração com duas estruturas de produção espanholas, a Arteleku e a La Laboral, surge daí e do modo como esse desafio levou Xavier Le Roy a atirar-se, uma vez mais, à reavaliação da sua prática e, por consequência, do que é a própria dança.

A peça é "a mais recente tentativa de Xavier Le Roy para atravessar as fronteiras da dança e da coreografia", diz peremptoriamente Marten Spangberg, também ele performer mas sobretudo teórico (foi co-curador do projecto Capitals, que decorreu na Gulbenkian no início da década). Não será difícil perceber porquê. O que Xavier Le Roy se propunha fazer ia ao encontro de uma investigação que diz muito a uma geração de coreógrafos como Charmatz, Jerôme Bel, Eszter Salamon, Meg Stuart, Benoît Lachambre, La Ribot, Mathilde Monnier, Vera Mantero ou Lia Rodrigues, onde a investigação está na base da própria criação. O resultado não é aquilo que vemos, mas sim aquilo que vemos é um processo em permanente questionamento, mesmo se apresentado como um objecto finalizado.

Ao longo dos anos, o trabalho deste coreógrafo francês tem-se caracterizado por uma investigação e uma reflexão profundas sobre os fundamentos da própria criação coreográfica, a sua relação com a história, a consciência de que há um filtro chamado biografia que condiciona os discursos e, muito particular, uma necessidade de identificação de rituais pertencentes à dança expressos noutras disciplinas. Ou, se quisermos, a vontade de ver dança em outras disciplinas.

Processo em construção

Mas talvez seja preciso explicar ainda que esta ligação ao butô não surge por acaso no discurso de Charmatz. O ano passado, a Culturgest, em Lisboa, mostrou La Danseuse Malade, de Charmatz, com uma Jeanne Balibar a ler textos de Tatsumi Hijikata, o pai do butô, e um Charmatz a ser atacado por um cão. Nesta peça, o imponderável e o intencional cruzavam-se, naquilo que é uma perpetuação do discurso sobre a instabilidade da própria concepção coreográfica.

O butô, sendo um género com identidade própria dentro da grande família da dança praticada no Oriente, tem com a dança contemporânea europeia uma relação que vem de longe. Podemos atribuir a Kazuo Ohno, que desapareceu em Julho aos 103 anos, a possibilidade de aproximação de linguagens que levaram a uma libertação de um formalismo e normatividade, sem abandonar o rigor e a intencionalidade.

Podemos até recuar à última apresentação de Xavier Le Roy em Portugal, Sacre du Printemps, que esteve no Maria Matos há um ano, para perceber isso mesmo. Então, o coreógrafo apresentava uma peça onde recreava os movimentos do maestro Simon Rattle conduzindo a Filarmónica de Berlim numa interpretação daSagração da Primavera, de Stravinsky. Nela, víamos os movimentos do maestro como se fossem os de um bailarino, no que era também uma leitura dos movimentos propostos por Nijinsky em 1913.

Product of Other Circumstances vive dessa instabilidade. O título liga-se a uma outra peça de Le Roy, Product of Circumstances, criada em 1999, sendo uma ilustração sobre um processo de construção. O seu caractér narrativo e linear mostra o método de pesquisa e questionamento, evidenciando uma vontade de experimentar não apenas o movimento mas a própria reflexão sobre o movimento. Porque a enunciação está na base da coreografia, Xavier observa os movimentos, exemplifica-os ou questiona-os, manipulando por via da intenção as imagens que são sugeridas.

Num dos textos que acompanham o espectáculo, Spangberg diz que a aproximação ao butô, sendo amadora, não deixa de ser feita por quem é um profissional da coreografia. Mas, afastando-se da curiosidade e do anedótico, e mesmo que o humor seja uma ferramenta de trabalho de Le Roy, o espectáculo explora "a poética do corpo num quadro tal que potencia uma introspecção crítica, complexificando, através da sua experiência e conhecimento, a relação dos significados atribuídos pelo corpo e o contexto onde se inserem"."

Ípslon PUBLICO

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