quinta-feira, maio 05, 2011

"O cinema é o espelho da vida, não temos outro" Manuel de Oliveira



Na estreia de "O Estranho Caso de Angélica", uma conversa com o cineasta sobre as paixões por trás dos seus filmes

Após um extenso percurso internacional - Cannes, Toronto, Nova Iorque, São Paulo ou Viena -, com especial atenção dos EUA, cuja imprensa colocou o filme nas listas dos melhores de 2010, "O Estranho Caso de Angélica" chega às salas portuguesas. O caso angelical de Manoel de Oliveira.

"O Estranho Caso de Angélica" é um filme cujo projecto remonta aos anos 50, inspirado num caso pessoal.

Sim, uma senhora na família da minha mulher adoeceu com o nascimento de um filho. Fomos visitá-la, e a sua irmã mais velha, muito religiosa, disse-me: "A mãe gostava muito que fizesse uma fotografia." Chocou-me muito, pois fazia muitas fotografias a vivos mas não a mortos, era desagradável fotografar a morte. Entrei em casa e ela estava no meio de uma sala escura, debaixo de um candeeiro e rodeada de uns senhores, deitada com o vestido de noiva numa "chaise longue" azul clara. Parecia sorrir, não parecia morta. O sorriso vem à superfície depois da morte por se ver livre do sofrimento de uma doença.

Peguei na máquina e apontei, uma Leica que, naquele tempo, duplicava a fotografia. Ao focar, fiz a experiência de ter uma parte do corpo a sair de outra. Assim, estava morta e o espírito soltava-se, e foi esta ideia que, mais tarde, me fez fazer o filme. Passava-se depois de 1946, quando os judeus fugiam para Portugal para apanhar o avião para a América. A história tinha também, portanto, um judeu que tinha fugido, intelectual e fotógrafo. E esse judeu é convidado a ir fazer a fotografia.

Há um trabalho de actualização, o contexto actual, o da crise. Mas há pormenores desse outro tempo, a questão judaica.

Em toda a fotografia e arte pictural é preciso que os artistas sejam cultos, as fotografias e os quadros representam-se a eles próprios, mas não falam nem se explicam. O mesmo pode acontecer com o cinema: é preciso um certo estado de coisas que faça compreender. Tinha uma versão onde colocava a questão: porque é que o judeu é assim perseguido? Hoje já não valia a pena, basta a palavra "judeu" para assumir um significado. Na altura, era Hitler quem os perseguia, mas hoje também são perseguidos quando se diz que é necessário destruir Israel. Daí a actualização, pois o que se passava numa determinada circunstância passa-se hoje noutra. Bastava o nome "Isaac" para dar o seu tom.

Por outro lado, era difícil conservar o filme à época. Tinha facilidade em filmar na mesma casa, mas quando antes havia uma só ponte da vista sobre o rio, hoje há três. A fisionomia da cidade mudou. Retornar à época passada seria horrível. De resto, é tudo uma situação enigmática, nada é verdadeiramente explicado. Toda a arte se baseia no "supõe-se", no "crê-se que".

Neste filme diz-se: "apenas muda a circunstância do homem." Mas várias outras coisas mantêm-se: a paixão que move os sentimentos, a morte que termina com os impulsos. Essa inevitabilidade é algo que percorre as suas obras.

Nos filmes, como em qualquer obra de arte, há sempre uma grande parte do subconsciente do artista do qual ele não se dá conta. Por isso, as obras enriquecem com o tempo, a crítica vai descobrindo partes mais ignoradas e as obras ficam mais ricas do que quando saem. Na verdade, o homem não mudou, apenas aquilo que fez: o progresso. A natureza do homem é a mesma: a inveja, a vingança, as paixões ou o amor são manifestações da natureza do homem que não mudaram nada. Há pessoas que, às vezes, mudam de partido. Eu pergunto: também mudam de natureza? Ela é a mesma, e é nela que está todo o bem e o mal do homem.

Nas suas obras, a natureza intervém nos momentos decisivos. Neste filme, Isaac parece mover-se pela paixão, para além da racionalidade.

Espinoza disse: "Supomo-nos livres porque ignoramos as forças obscuras que nos comandam." Somos movidos por impulsos que ignoramos da natureza: o ódio, o amor, a paixão, a bondade. Pode-se quase perguntar se somos dependentes porque ninguém nasceu por vontade própria. Seremos verdadeiramente responsáveis pelos nossos actos? Temos a justiça que nos torna responsáveis e a evolução que o homem tem engendrado, mas não somos independentes. Somos dependentes das circunstâncias, e por isso cito Ortega y Gasset no filme. Tornamo-nos responsáveis perante a lei e pela justiça, mas na verdade somos um joguete do destino.

A paixão de Isaac revela-se pela lente do fotógrafo, quando ele tenta captar o indecifrável - a morte -, algo que tem também a ver com a função do cinema.

Porque o cinema tem tudo a ver com a vida, tal como a arte. José Régio, grande poeta português, dizia que a originalidade de uma obra de arte está na personalidade do artista que a faz. Na Renascença, os pintores pintavam todos o mesmo: as Madonnas, o Menino Jesus e Nosso Senhor. Mas eram todos diferentes.

Quando Isaac chega à cidade e vê o trabalho dos homens na terra, parece dividido entre essa ideia de corpo e o desejo pelo absoluto de Angélica. Em certas alturas, está no quarto a pensar no seu espírito mas ouvimos os homens a trabalhar.

Será um contraste entre a paixão e a libertação em que me pergunto se Isaac será, ou não, um apaixonado. Ou seja, se haverá um espírito que o liberte do pesadelo que são os cavadores e que é a nossa vida em determinadas circunstâncias. Em "Guerra e Paz" [Lev Tolstói], há um nobre que está moribundo, sabe que vai morrer e pergunta-se o que é a morte. A certa altura, olha para um canto do seu quarto onde se encontra uma porta. E aí vê: a morte é uma porta. É algo que me ficou sempre comigo, acho extraordinário.

É uma imagem de grande simplicidade.

Mas muito enigmática, porque toda a porta que dá para uma saída, dá para uma entrada. Na vida material onde vivemos sabemos para onde dá a porta quando morremos: o cemitério. Espiritualmente, a morte é absoluta ou pendente? No filme, o espírito leva Isaac e salva-o da situação angustiosa em que vivia. Mas é difícil explicar as coisas que não têm explicação. Sentem-se, percebem-se, nada mais.

A morte é um dos maiores mistérios. Mas neste filme filma-a, de facto, ou o seu espírito.

Sim, o espírito. Tem a ideia de que toda a matéria é imóvel? Toda ela se move na vida pela força do espírito, é este que a anima. E quando a pessoa morre, o espírito solta-se.
Quando estava no colégio de jesuítas, em Espanha, diziam-nos que, depois da morte, as almas vão para o purgatório. Cheguei à conclusão, na ingenuidade dos meus 16 anos, que o mundo era uma fábrica de almas. Hoje, penso numa imagem muito certa: os rios. Têm uma vida e passam por ela torturados, e quando desaguam no mar, perdem a sua personalidade pois juntam-se ao absoluto.

Depois, vem o calor, a evaporação e as chuvas que caem sobre a terra. A fonte renasce e o rio continua. Vamos sempre para o absoluto, e depois um retorno que gera continuidade. Para os budistas, quando morre uma pessoa, a alma sai e pode instalar-se num gato. Falei com o Dalai Lama e pus-lhe essa questão: se a pessoa morre e a alma passa de um humano para uma fera, não perde a evolução do raciocínio? Disse-me que não, pois o que conta é o esforço. Percebi que a vida, em si mesmo, é um esforço enorme em tudo que fazemos. Mas é ele que activa a imaginação.

Jean Renoir foi à Índia filmar "O Rio Sagrado" (1951).

O rio é uma crença da Índia. Tomam banho nele, purificam-se naquela água. Mas é também uma personalidade. O mar é que não, tem um nome mas recebe água de todos os lados, anula esse pensamento. Não se sabe que bocado vem de que rio, abstrai-se.

Isaac comporta-se como um sonâmbulo, vive focado no sonho de Angélica. Sobre "Francisca" (1981), João Bénard da Costa escreveu: "o comportamento fantomático e errático dos seus personagens é muito mais determinado por quem os visita durante a noite e o sono, de que pelos acontecimentos ocorridos à luz do dia. Nesse sentido, os personagens de Oliveira (...) são sonâmbulos, separados do mundo, embora continuando nele." E em relação à personagem de "Benilde ou a Virgem Mãe" (1975): "ela própria é sonâmbula (...) e todo o seu comportamento é determinado pelo que durante esses sonhos se possa ter passado e de que não guarda - acordada - qualquer memória."

Parece-me bem, explica "Angélica". Eu também preciso de explicações... Não vejo tudo e a vida está construída dessa forma. Vivemos num segredo que nos é vedado. Há várias crenças, e admiro muito a figura de Cristo, divina ou não, já não importa, mas que reconhece que a natureza humana é fraca. É ele que abre o campo da tolerância para a fraqueza do homem, que é capaz de fazer coisas terríveis. Essa convicção é interessante na figura de Cristo por ser extraordinária, não vejo que em parte nenhuma tenha sido ultrapassada.

A fraqueza do homem, neste filme, faz com que o que era amor, para Isaac, se torne também num vício.

Na Bíblia, há uma passagem onde se interroga Cristo: "alguém que casou três vezes, quando morrer e for para o céu, qual será a sua mulher?" E Cristo responde: "No céu, as coisas são diferentes." Mas caímos sempre na dúvida. No livro de São Paulo, que diz que o espírito é como o ar que se respira, lê-se: "se Cristo não ressuscitou, toda a nossa fé é vã." É uma palavra terrível.

Vendo como Isaac procura o absoluto, é isso que busca, quando diz que Angélica atenua ou elimina as suas angústias na terra.

Por isso, quando Angélica o leva, juntam-se. Já não é uma pessoa, é espírito. Está limpo da vingança, maldade e bondade. O cadáver fica e ele junta-se aos outros espíritos. Tanto desisti de fazer este filme que foi o produtor que me pediu para fazê-lo, porque partia do princípio que o cinema não filma sonhos nem pensamentos.

Mas provoca-os.

Sim, mas não os filma. O sonho, no mudo, não tinha nem som, nem palavra. Não há barulhos no sonho, logo o cinema mudo era bastante onírico. Quando ganhou a palavra e a cor, tornou-se mais realista.

Há uma homenagem a Georges Méliès neste filme.

Com certeza. Todo o cinema ficou inventado de entrada: Lumière deu o realismo, Méliès a fantasia e Max Linder o cómico. Está tudo lá, não há mais nada.

A sua essência não muda para além da evolução tecnológica.

Porque todos os efeitos especiais pertencem à técnica, não à arte. Para além disto, sugerimos o inacreditável. Onde podemos ir mais longe do que aquilo que somos? Li um realizador dizer que quando apresentava um filme novo, se ouvia que era o filme de um grande realizador, ficava triste. Mas se ouvia que era um grande filme, ficava contente. Isto é evidente: o realizador não deve mostrar-se. Mostra o inconcebível, mas não se mostra a ele próprio.

Sobre o seu espólio a dar à cidade do Porto ainda não se encontrou solução?

Está-se a estudar, mas é difícil e a crise dificulta mais. Gostava de deixar uma reportagem familiar. É para a memória, assim sempre fica.

Quanto à nossa memória, a vida da Cinemateca está a estrangular-se, não chegam autorizações para os seus serviços.

É um crime. Basta uma inundação ou um incêndio para desaparecer tudo. A nossa memória está nos livros, nas pinturas e nos filmes. Dizia Arturo Ripstein, um realizador mexicano, que os governos deviam ajudar os realizadores não por favor mas por obrigação, porque o cinema é o espelho da vida, não temos outro.

in IPSLON

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